A alma imortal

O estudo do Universo nos conduz ao estudo da alma, à busca do princípio que nos anima e dirige nossos atos. 

A Fisiologia nos ensina que as diferentes partes do corpo humano se renovam num período de alguns anos. Sob a ação de duas grandes correntes vitais, uma troca perpétua de moléculas se produz em nós; as que desaparecem do organismo são substituídas uma a uma por outras provenientes da alimentação. Desde as substâncias moles do cérebro até as partes mais duras da estrutura óssea, todo nosso ser físico está submetido a contínuas mudanças. Nosso corpo se desfaz e se reforma inúmeras vezes durante a vida. Todavia, apesar das transformações constantes, através das modificações do corpo material, permanecemos sempre a mesma pessoa. A matéria do nosso cérebro pode se renovar, mas nosso raciocínio subsiste e, com ele, nossa memória, a recordação de um passado do qual nosso corpo atual não participou, absolutamente. Há, então, em nós, um princípio distinto da matéria, uma força indivisível que persiste e se mantém no meio dessas perpétuas mudanças. 

Sabemos que a matéria não pode organizar-se a si mesma e produzir a vida. Desprovida de unidade, desagrega-se e divide-se até o Infinito. Em nós, ao contrário, todas as faculdades, todas as potências intelectuais e morais se agrupam numa unidade central que as abraça, religa-as, esclarece-as; e essa unidade é a consciência, a personalidade, o eu, em uma palavra, a alma.

A alma é o princípio da vida, a causa da sensação; é a força invisível, indissolúvel, que rege nosso organismo e mantém o acordo entre todas as partes do nosso ser.[1] As faculdades da alma nada têm em comum com a matéria. A inteligência, a razão, o raciocínio e a vontade não poderiam ser confundidos com o sangue de nossas veias ou a carne de nossos músculos. Da mesma forma que a consciência, esse privilégio que possuímos de pesar nossos atos, para discernir o bem do mal. Essa linguagem íntima que se dirige a qualquer homem, do mais humilde ao mais elevado, essa voz, cujos murmúrios podem perturbar o brilho das maiores glórias, nada tem de material.

Correntes contrárias se agitam em nós. Os apetites, os desejos da paixão aí se chocam contra a razão e o sentimento do dever. Ora, se fôssemos apenas matéria, não conheceríamos essas lutas, esses combates; deixar-nos-íamos ir sem-pesares, sem-remorsos, para nossas tendências naturais. Ao contrário, nossa vontade está frequentemente em conflito com os nossos instintos. Através dela, podemos escapar das influências da matéria, domá-la, fazer dela um instrumento dócil.

Não se veem homens, nascidos nas condições mais difíceis, superar todos os obstáculos, a pobreza, a doença, as enfermidades e chegar ao primeiro plano através de seus enérgicos e perseverantes esforços? Não se vê a superioridade da alma sobre o corpo afirmar-se de uma maneira mais brilhante ainda no espetáculo dos grandes sacrifícios e dos desenlaces históricos? Ninguém ignora como os mártires do dever, da verdade revelada antes da hora, como todos os que, pelo bem da Humanidade, foram perseguidos, supliciados, presos à cruz, puderam, no meio das torturas, até o limiar da morte, dominar a matéria e, em nome de uma grande causa, impor silêncio às revoltas da carne!

Se houvesse em nós apenas matéria, não veríamos, enquanto nosso corpo mergulha no sono, o espírito continuar a viver e a agir sem a ajuda de nenhum dos cinco sentidos e nos mostrar, através disso, que uma atividade incessante é a própria condição da sua natureza. A lucidez magnética, a visão a distância sem o concurso dos olhos, a previsão dos fatos, a penetração do pensamento, são tantas provas evidentes da existência da alma.

Assim, pois, fraco ou poderoso, ignorante ou esclarecido, um espírito vive em nós, rege esse corpo que é, sob sua direção, apenas um servidor, um simples instrumento. Esse espírito é livre e perfectível, por conseguinte responsável. Ele pode, à sua vontade, melhorar-se, transformar-se, tender para o bem. Confuso nuns, luminoso noutros, um ideal clareia seu caminho. Quanto maior é esse ideal, tanto mais as obras que ele inspira são úteis e gloriosas. Feliz a alma que um nobre entusiasmo sustenta na sua marcha: o amor da verdade, dajustiça, da pátria, da Humanidade! Sua ascensão será rápida, sua passagem nesse mundo deixará traços profundos, um campo de onde brotará uma colheita bendita.

* * *

Estabelecida a existência da alma, impõe-se desde logo o problema da imortalidade. Aí está uma questão da maior importância, pois a imortalidade é a única sanção que se oferece à lei moral, a única concepção a satisfazer nossas ideias de justiça e responder às mais elevadas esperanças da raça humana.

Se nossa entidade espiritual se mantém e persiste através da perpétua renovação das moléculas e as transformações do nosso corpo material, suas dissociações, seu desaparecimento final não poderia atingi-lo mais na sua existência.

Vimos que nada se aniquila no Universo. Quando a Química e a Física nos demonstram que nenhum átomo se perde, que nenhuma força se desvanece, como acreditar que essa unidade na qual se resumem todas as potências intelectuais, chegue a se dissolver? Como acreditar que esse eu consciente, em que a vida se desprende das cadeias da fatalidade, possa aniquilar-se?

Não somente a lógica e a moral, mas também — assim como veremos mais adiante — os próprios fatos, fatos de ordem sensível, ao mesmo tempo fisiológicos e psíquicos, tudo concorre para provar a persistência do ser consciente: a alma encontra-se no Além tal qual ela própria se fez através dos seus atos e seus trabalhos no decorrer da sua existência terrestre.

Se a morte fosse a última palavra de todas as coisas, se nossos destinos se limitassem a essa vida fugidia, teríamos essas aspirações por um estado melhor, por um estado perfeito, do qual nada na Terra pode nos dar a ideia? Teríamos essa sede de conhecer, de saber, que nada pode apaziguar? Se tudo cessasse no túmulo, por que essas necessidades, esses sonhos, essas tendências inexplicáveis? Esse grito poderoso do ser humano que ecoa através dos séculos, essas esperanças infinitas, esses impulsos irresistíveis para o progresso e a luz, seriam apenas os atributos de uma sombra passageira, de uma agregação de moléculas apenas formada, e logo desfeita? O que é, então, a vida terrestre, tão curta que não nos permite nem mesmo, na sua maior duração, atingir os marcos da Ciência; tão cheia de impotência, de amargura, de desilusão, que nela nada nos satisfaz inteiramente; a tal ponto que depois de haver obtido o objeto dos nossos desejos, tornamo-nos insaciáveis e nos deixamos levar na direção de um objetivo sempre mais distante, mais inacessível? A persistência que pomos em perseguir, apesar das decepções, um ideal que não é desse mundo, uma felicidade que nos foge sempre, é uma indicação suficiente de que há mais alguma coisa além da vida presente. A Natureza não poderia dar ao ser aspirações, esperanças irrealizáveis. As necessidades ilimitadas da alma reclamam, forçosamente, uma vida sem-limites.

(Texto do Livro Depois da Morte de Léon Denis)


[1] Isto, com a ajuda de um fluido vital, que lhe serve de veículo para a transmissão das suas ordens aos órgãos. Nós retornaremos mais adiante a esse terceiro elemento, que constitui o corpo sutil ou perispírito; esse sobrevive à morte e, inseparável da alma, acompanha-a em todas as suas peregrinações. (N.A.)

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